terça-feira, março 30, 2010

Vamos sambar no GIA?

Por: Maycira Leão


Desde março desse ano, passei a “frequentar” a cidade de Salvador semanalmente. Por questões que fogem ao interesse dessas breves considerações, a capital soteropolitana se apresentava a mim como alternativa de contato com engajamentos artísticos providos de discurso e ação legitimada.

Durante os primeiros meses, ainda afoita em meio à turbulência gerada pela opção por uma vida sem localização fixa, percorri as ladeiras da cidade lançando garras por sobre os dados concretos e invisíveis aos quais pude me apreender.

Aos poucos, o olhar estrangeiro se desmembrava dando lugar ao binocular. Além da contemplação, pude focar detalhes que realçavam contrastes e tensões entre a Salvador bela, instigante, exótica, de um lado; e, do outro, medíocre e prostituída.

Representante desse palco de tensões, o famoso Pelourinho ainda era (e é) um mistério desafiador, um misto oracular que ora se esvazia, ora se torna pleno em sua energia carregada de história e esconderijos. Foi lá, na Rua das Laranjeiras, n. 46, que me encontrei com o tão esperado QG do GIA (QG = Quartel General).

O GIA – Grupo de Interferência Ambiental, reunido em 2002 e formado por amigos oriundos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, tornou-se um dos ícones dentre os diversos coletivos de artistas que se proliferaram no Brasil, desde fins do século XX.

Num contexto geral, enquanto movimento não nomidado, mais de 50 coletivos de arte surgiram com uma postura de resistência, direta ou indireta, a um sistema de validação pautada num mercado de marchands, colecionadores e instituições, responsáveis pelo cerceamento da circulação e pela hipervalorização do artista como entidade em destaque na sociedade.

Movidos por uma prática de vida que vai além desse questionamento, grande parte desses coletivos elegeu a rua e o espaço público como meio eficaz de manifestação de seus anseios artísticos, éticos, poéticos e políticos, numa tentativa de também romper as barreiras da acessibilidade à qual a arte enquadrada havia se imposto.

Não me cabendo, por ora, aprofundar aspectos das contradições e paradoxos que permearam a sobrevivência dos coletivos, vale observar como a consolidação1 da intervenção urbana, enquanto linguagem artística assumida inclusive em editais de fomento e circulação, acompanhou o desenvolvimento desse movimento de apelo coletivo, viabilizando inclusive ações de grande escala a partir da participação de uma maior quantidade de agentes.

No entanto, a ação coletiva não necessariamente esteve associada à massa enquanto número participante na rua. Assumir-se enquanto coletivo era enxergar-se como grupo legitimador de seu próprio discurso/ação, permitindo-se uma certa autonomia e segurança de atitude, inclusive pela dissolução de uma autoria focada no indivíduo, cujo status quo é passível de ser medido e comparado. Estar em conjunto2 e apresentar-se como tal, no espaço público, envolve então força e vontade de provocar uma energia desestabilizadora3 de um cotidiano homogêneo e hiper-sincrônico4, em que os contextos individuais tornaram-se hiperorientados esteticamente.

Envolvidos nessa estética do cotidiano, termo também utilizado pelo GIA para caracterizar seus trabalhos, artivismo e espetacularidade5 assumem uma nova tensão, reestabelecendo contradições dentro do próprio âmbito da intervenção e do coletivo. Um modismo se estabeleceu na intervenção urbana: qualquer estranhamento visual ou qualquer objeto/ação deslocalizado de seu contexto inicial passaram, a priori, a se conformar com a intervenção como sendo uma “pegadinha” no ritmo acelerado do olhar.

Pergunto-me: até que ponto essa estratégia não perdeu sua potência enquanto microrresistência6que se banalizou? Como acontecimento efêmero, como perenizá-lo minimamente no íntimo dos cúmplices que compartilharam a ação? Como mobilizar um questionamento racional ou umasurpreensão7 e um rebuliço inapreensível pelo discurso verbal? Como conquistar uma brecha no espaço sensorial para além do reconhecimento do estranhamento? Ganha um pirulito quem souber.

Não à toa, o GIA se denomina como um grupo de amigos. Não há garantias de sua persistência sem a afinidade por manter suas relações vivas e atualizadas. Convivem, se encontram e se desencontram com a generosidade de quem ama. Se a música percorre por alguns e grita a presença, assumem todos o samba.

Cheguei ao Pelourinho para o samba do GIA numa quinta, com a ansiedade gerada pela curiosidade e voltei para casa com a tranquilidade de quem caminha cantando.

O QG está situado numa rua que liga um grande estacionamento para carros a áreas mais badaladas daquele ponto turístico. A passagem é certa e a porta está sempre aberta. Àqueles com afinidade, o samba fuleiro logo se faz jogo de alegria, entrando na roda com tamborim na mão ou com um copo de cerveja ofertado por um desconhecido. Não há venda ou comércio lá dentro. Os músicos são rotativos, assim como a “vaquinha” para se comprar a bebida. Como no antigo samba-de-chave baiano, no qual os músicos e bailarinos fingiam procurar uma chave no meio da roda para que fossem substituídos, os agenciamentos vão se formando sem orientação pré-definida.

Para os mais próximos, algumas composições musicais do grupo já conhecidas, como “Cerveja Gia” e “Degrau”, são cantadas como estímulo agregador aos novatos no terreiro ou aos errantes que por ali passam. As poderosas letras das músicas, credibilizadas pela crença compartilhada, que em sua maioria retratam e registram ações de intervenção realizadas pelo GIA, mobilizam os ouvintes, se misturando a clássicos do samba brasileiro, sejam eles nascidos na Bahia ou no Rio de Janeiro.

Nunca havia me ocorrido a música como registro de uma ação. Fiquei intrigada com a capacidade de abrangência pós-evento com que ela se perpetuou em minha lida diária. Acordei cantando e até ensinei um samba: “Quem vive sonhando, pensando, matutando / tentando encontrar um jeito de mudar a situação / Aproveitando esse registro expandido, eu lhe digo, meu amigo, você muda opiniões / Modificando aquilo que está ao seu lado, você muda o mundo todo, acredite em suas ações!”8.

Além de resistência enquanto identidade, local e nacional, o samba repercutia a intervenção urbana contaminada pelo suor da ginga. O ritmo da roda estava agora comprometido com a vivência na cidade, num misto de reflexão e experiência sensorial coletiva, tornando-se “condição para que o outro deixe de ser simplesmente objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência” 9.

***

Há controvérsias sobre a origem do nome samba. Alguns acreditam que tenha surgido com referência direta a alguma das muitas línguas africanas10, possivelmente do quimbundo, ondesam significa dar, e ba, receber. No Brasil, acredita-se ainda que o termo “samba” tenha sido uma variação de semba (umbigada), dança na qual duas pessoas se chocam, saltando, encostando os umbigos no ar.

Me instiga imaginar a intervenção urbana correndo, ou melhor, se expandindo enquanto relato musicado por entre dois umbigos no ar. Talvez seja uma possibilidade em manter a potência da ação ligada ao poro e a esse contato invisível que nos apreende e nos mantém em suspensão.

Não saberia precisar quando começou exatamente o samba no QG, sei que aguardo o próximo. Vamos sambar no GIA?


1 Não quero com isso ignorar as diversas manifestações históricas anteriores, tanto de intervenções urbanas, quanto de coletivos, mas estou me focando nesse texto num momento específico da recente produção brasileira. Inclusive diálogos e trocas são sempre bem-vindos:maicyraleao@gmail.com .

2 Como praticante também solitária, reconheço com tranquilidade a possibilidade de se “estar em conjunto” mesmo a partir de um suporte/estímulo solo. Portanto, “coletivo” para mim é vivido a partir de um estado e não de números.

3 Ver: ROLNIK, Suely. Inconsciente Antropofágico – ensaios sobre as subjetividades contemporâneas. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.

4 Ver: STIEGLER, Bernard. Reflexões (não) contemporâneas. Maria Beatriz de Medeiros (trad. e org.) Chapecó: Argos, 2007.

5 Ver: DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997

6 Ver: BERENSTEIN, Paola Jacques. Corpografias urbanas in: www.vitruvius.com.br/arquitextos/

7 Ver: MEDEIROS, Maria Beatriz de. Aisthesis: estética, educação e comunidades. Chapecó: Argos, 2005.

8 Trecho da Música “Acredite em suas ações”, do Samba GIA. Ver: www.giabahia.blospot.com

9 ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental - Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. Pág. 11 e 12.

10 Fonte: Wikipedia

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